Arqueologia
Kjarisiri - A lenda do "Degolador"
Texto de Dalton Delfini Maziero
A lenda que segue fala de um dos mais populares e aterradores personagens do Mundo Andino. Suas várias versões foram recolhidas pelo próprio autor junto aos camponeses aymaras na ocasião de sua expedição ao lago Titicaca, no qual permaneceu por três meses estudando as lendas, mitos e antigos vestígios de civilizações desaparecidas das culturas pré-incaicas.
Nakaq, Nakajj, Nakkaq, Nacaj, entre outras variantes, vem de Nakay ou Nak'ay, que significa "degolador", "aquele que degola". São conhecidos também como Kjarisiri, Llik'ichiri ou simplesmente, "Chupa Sebo". A variedade com que descrevem este lendário personagem em várias áreas do Peru e Bolívia é impressionante. Mesmo apresentando variantes e peculiaridades conforme a região, podemos distinguir certas características em comum. No antigo Peru pré-colombiano, Nacac significava "carniceiro". Não no sentido de açougueiro, mas sim na função em que uma pessoa descarnava e esfolava animais para um sacrifício religioso.
Na margem noroeste do lago Titicaca, é muito difundida a versão do "Chupa Sebo", homem comum que vaga solitariamente pelas montanhas e estradas em busca de viajantes desavisados. Muitos habitantes - camponeses de origem aymara - acreditam nele e nas maldades que é capaz de realizar. Segundo os aymaras, o Kjarisiri costuma atuar da seguinte forma: Escolhida a vítima, aproxima-se simpático e sorridente, ganhando sua confiança. Depois, oferece uma bebida que a deixa desacordada. Alguns dizem que faz isso através de um pó mágico. Em seguida, opera a vítima com o auxílio de um aparelho médico, recolhendo em uma vasilha a gordura desejada. Na "operação", não fica nenhuma espécie de cicatriz. Na manhã seguinte, o viajante acorda e segue seu caminho sem se recordar do ocorrido. Logo adoece e morre, depois de um ou dois dias. Segundo uma das versões, a gordura recolhida seria vendida pelo Kjarisiri aos hospitais, para ser utilizada em operações!
Em outras regiões, esse personagem assume o papel de pai de família. Trabalharia desta forma - assassinando viajantes - por questões meramente econômicas. Não teria uma vestimenta que o identificasse, confundindo-se com qualquer morador local. Contudo, carregariam sempre uma arma, geralmente uma faca afiada ou um revólver com o qual obrigariam a vítima a render-se. Gosta de agir à noite, em encruzilhadas, pontes e estradas desertas. A gordura recolhida, além de ser vendida, poderia ser utilizada na fabricação de peças de cobre, ou mesmo para lubrificar imagens religiosas.
Entre 1570 e 1584, o padre Cristóbal de Molina recolheu, enquanto trabalhava no hospital para indígenas de Cusco, uma série de lendas e tradições, que seus próprios pacientes e sábios nativos lhe transmitiam. Molina dominava amplamente o quêchua. Todas estas lendas foram registradas em sua obra, "Ritos e fábulas dos incas" (1571). Nele, o autor deixa um relato que mostra serem os boatos sobre pessoas que recolhiam sebo, algo já muito antigo: "No ano de 71 (1571) e antigamente tinham e acreditavam os índios, que da Espanha haviam mandado (os espanhóis) a este reino por gordura dos índios para curar certas doenças que não se encontravam para ela medicina (cura) senão na citada gordura, a cuja causa naqueles tempos andavam os índios muito recatados e se estranhavam dos espanhóis com tanto agrado, que a lenha, ervas e outras coisas não a queriam levar a casa de espanhol, por dizer que os matassem ali dentro para retirar-lhes a gordura."
O medo indígena pode ser justificado nas práticas violentas utilizadas pelos europeus no início da conquista. Em 1601, Antônio Herrera conta de forma bastante realista, o tipo de tratamento que os espanhóis davam aos indígenas americanos: "Víasse a quantos assaram e queimaram vivos, a quantos jogaram aos cachorros bravos que os comecem vivos, a quantos mataram porque estavam gordos para tirar-lhes a gordura para curar as chagas dos castelhanos; a quantos degolaram..." Tanto a gordura quanto a degola são aqui citadas. Eram portanto, elementos perfeitamente integrados na mentalidade da época. Vale a pena citar ainda uma curiosa passagem de um livro de medicina popular, escrito em 1922 pelos doutores espanhóis Angel Maldonado e Hermilio Valdizán. Talvez os nativos americanos tivessem lá seus motivos para temerem os "chupa sebos": "O sebo do morto (material gorduroso que dizem os curandeiros, extraída dos cadáveres, principalmente das pessoas falecidas por feridas de bala, ou por enfermidades não infecciosas) em fricções, para acalmar as dores reumáticas; a principal aplicação que se dá a este sebo de morto é a de tirar as cicatrizes, de preferência as deixadas pela varíola...Também tem aplicações em fricções nas fraturas de ossos, contusões e luxações; a dão de beber, com chocolate, para matar lentamente uma pessoa."
A versão mais interessante contudo, é a que fala do Kjarisiri como um padre franciscano! Nessa variante, ele seria capaz de realizar certas magias com suas vítimas, provocando o sono nos viajantes através de um pó mágico, que é soprado no rosto. De uma caixinha que carrega sempre consigo, tira uma faca afiada, com a qual extrai a gordura do corpo humano. A ferida então seria tampada de forma tão perfeita, que ao acordar, a vítima não se lambraria e não sentiria nada. Em seguida o infeliz viajante é tomado por uma profunda anemia, da qual geralmente não tem salvação. Muitas vezes, o lendário ser pode vir tocando um sinete, montado em uma mula.
Alguns aymaras o descrevem como uma pessoa baixa, troncuda, com barba e cabelos compridos e cheios. Possui uma expressão aterradora. Para muitos, é sinônimo de morte garantida. Carregaria sempre - além da faca - uma corda pendurada no corpo. Contudo, ele pode ser evitado através do alho, a exemplo das superstições européias sobre vampiros. Os lugares montanhosos e desertos seriam os preferidos do Nakaq (ou Kjarisiri), mas também seriam encontrados em cemitérios onde passavam a noite, ocultos pela escuridão, a extrair a gordura dos mortos.
Para a etnia dos Kallawayas, o ser seria a personificação da hipocrisia e deslealdade. Pode assumir a imagem de um médico, vestido com um saiote negro, detentor de uma enorme habilidade para manipular sua afiada faca, com a qual corta o umbigo da vítima, extraindo a gordura por aquele local. Ao contrário das outras versões, não vende este material. Usa-o como alimento.
Outra versão, ainda mais aterradora, seria a do Llik'chiri (o mesmo personagem que Nakaq ou Kjarisiri, na língua quêchua). Sairiam em bandos diretamente dos conventos, para uma peregrinação de morte. Em grupos, vestindo uma espécie de túnica branca, faziam questão de serem notados. Vagavam mascarados, balançando sinos, anunciando sua marcha macabra. Buscavam as vítimas de onde extraiam a gordura para vários fins, inclusive para curar a sífilis! Em seus acampamentos, podiam-se ver várias estacas onde espetavam os pedaços dos cadáveres já esquartejados. Não usavam nenhum pó mágico, como os personagens das lendas aymara. O sino representava seu instrumento de persuasão. Com ele, emitiam um som irresistível, que embalava a vítima num sono de morte.
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