Arqueologia
O Mistério da Pedra do Ingá
Texto de Vanderley de Brito
A Pedra do Ingá, uma rocha que se sobressai soberba em meio a um lajedo aflorado à margem esquerda do riacho Bacamarte, na Paraíba, interior do Brasil, com seus inúmeros curiosos desenhos entalhados, é um monumento arqueológico que excita perplexidade até naqueles mais apáticos aos mistérios latentes da humanidade. E, como tal, não fica a dever aos mais extraordinários e misteriosos feitos das remotas sociedades primitivas da Terra.
No Peru existe a espantosa série de padrões geométricos sulcados no chão, de imensos desenhos cobrindo grandes áreas e tão grandes que só podem ser distinguidos do ar, e
que até hoje é difícil saber o objetivo ou como puderam os antigos indígenas de Nazca os tracejaram sem o necessário distanciamento. Na Inglaterra há os misteriosos círculos monolíticos de Stonehenge, os intrigantes dolmens e as longas fileiras de menires, cujo mistério reside não só no tamanho das pedras e na questão de como foram transportadas e colocadas nos seus lugares, porém mais ainda no padrão racional destas construções pré-históricas. Como estas curiosidades, podemos ainda citar as imensas pirâmides egípcias, maias, astecas e toltecas e tantas outras intrigantes obras da Idade da Pedra cujo mistério é ainda palpitante.
No Ingá, o monumento ígneo é formado por um elaborado conjunto de símbolos que foram, em tempos remotos, perfeitamente entalhados e polidos em sua dura superfície gnáissica. Ainda não existe qualquer resposta sobre o que veio a representar ou mesmo quem foram estes complexos povos pré-históricos, cujo monumento vem ser um testemunho de seu grau artístico-cultural. É pouco provável que os gráficos do Ingá representem um conjunto ideográfico, como os hieróglifos egípcios, ou silábico, como a escrita cuneiforme do antigo Oriente Médio.
A sua disparidade e, principalmente, a falta de conexões sistêmicas que sugira uma organização textual, testemunha muito pouco em favor de uma escrita. No entanto, é inegável que ali contém uma mensagem cifrada.
O sítio ocupa um hectare de área tombada como “Monumento Nacional” pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN - atual IPHAN - desde 30 de novembro 1944 por vias do Museu Nacional do Rio de Janeiro e iniciativa do pesquisador José Anthero Pereira Júnior, sendo o segundo monumento pré-histórico tombado em nosso país (1).
No seu principal painel, ora denominado de “Painel Vertical”, existe uma grande profusão de sinais, extraordinariamente complexos, gravados extensamente ao longo de um opulento paredão em gnaisse, de 46m de comprimento por 3,8m de altura, que se eleva no lajedo do riacho Bacamarte, no sítio Pedra Lavrada, município de Ingá. Além deste atípico mural em parede longitudinal, na adjacência imediata, há dois outros gravados no piso horizontal.Os quais, segundo proposta do pesquisador Gilvan de Brito, denominamos de painéis: “Superior”; localizado no dorso da formação, e “Inferior”; insculpido de frente ao painel vertical, no lajedo à base do paredão, onde se observa um conjunto de possíveis astros que muitos já aludiram semelhanças com a configuração da constelação de Orion.
O conjunto principal da Pedra do Ingá é composto por insculturas profundamente sulcadas, em obediência a complexos motivos gráficos, que até hoje intriga cientistas e todos os demais que se depara com sua primorosa composição petrográfica. Indubitavelmente, o complexo rochoso do riacho Ingá do Bacamarte é o mais famoso e visitado sítio de gravura rupestre do Brasil e referenciado internacionalmente. No entanto, nas paredes de outras rochas do pedregal também existem símbolos gravados que se apresentam sinópticos e sob técnica de gravação superficial e tosca, diferente, portanto, daquelas gravuras largas, profundas, bem polidas e conjuntas dos painéis do conjunto principal. Sob aparente frivolidade, estes diversos registros ignóbeis, segundo proposição terminológica do estudioso Thomas Bruno Oliveira, da Sociedade Paraibana de Arqueologia (2), denominamos de inscrições “Marginais”. Estas, se apresentam raspadas no lajedo suporte do pedregal como também picoteadas ornando o piso, paredes e caldeirões de margens de uma pitoresca corredeira do riacho Bacamarte, encerrada entre paredes, que se localiza imediatamente por traz do mesuro conjunto de inscrições.
Os sinais rupestres do Ingá foram insculpidos com apurada técnica e, segundo cremos, por uma comunidade pré-histórica, que ao longo dos recursos hídricos gravava duras rochas com fino acabamento e polimento e que, não se sabe por que, em algum momento de nossa pré-história essa prática estagnou na inatividade. A simbologia e suas formas simétricas muito elaboradas variam entre: pontos capsulares agrupados, retângulos gradeados, figuras antropomorfas, zoomorfas, possíveis fitomorfos, sulciformes, contornos curvilíneos, círculos pendulares, cortados, cheios, concêntricos e outras formas ambíguas. Cultura gráfica recôndita que certamente materializa em seus elementos constitutivos as definições imaginárias - profundas e autênticas - de um determinado grupo social extinto.
Naturalmente, muito se conjectura sobre a origem destas intrigantes gravuras, que são atribuídas a finalidades e artífices diversos; desde povos vindos de outras longitudes continentais até alienígenas vindos do firmamento sideral. Segundo a arqueóloga Gabriela Martin, da Fundação do Homem Americano – FUMDHAM (3), estas propostas fantásticas que cercam o monumento gráfico do Ingá vêm afastando os pesquisadores acadêmicos. De fato, a Pedra do Ingá é historicamente marcada pelo sensacionalismo.
Seguramente, a Pedra do Ingá já perdeu muito dos primitivos sinais e tantos outros perderam espessura e apresentam tão somente resquícios. Uma reprodução do painel realizada pelo museólogo Balduíno Lélis há mais de 15 anos, por encomenda do Banco do Estado da Paraíba, exibe representações que hoje não mais figuram no painel. José Anthero Pereira Jr., quando de sua visita ao Ingá, em fevereiro de 1945, recolheu informes entre pessoas nascidas e criadas naquela região, que há trinta anos passados muitos outros sinais figuravam no rochedo, que era então quase totalmente insculpido na sua face vertical. Há informes também, do professor Clóvis Lima dos Santos, que até a década de 1950 o conjunto de pedras com inscrições rupestres era bem maior, ocupando área de 1.200m2, mas, infelizmente, segundo o engenheiro Leon Clerot, que durante décadas desenvolveu pesquisas arqueológicas na Paraíba, em 1953 surpreendeu operários destruindo o pedregal e os blocos da cercadura nas duas margens do riacho estavam sendo reduzidos a rachões e paralelepípedos para a pavimentação das ruas da Capital. Embora tardia, a ação foi sustada pela Prefeitura do Município e pelo IPHAN, depois de denúncia formulada pela Sociedade Paraibana de História Natural.
A Pedra, muito provavelmente, apesar de já muito depredada, ainda comporta um modelo rudimentar de pré-escrita, cuja chave da decodificação se perdeu no transcorrer dos milênios e, é bem possível que oculte um código mnemônico melódico, onde cada símbolo individual represente toda uma linguagem reunindo morfemas, lexicais e gramaticais, que venha expressar, de forma polissíntese, palavras ou mesmo frases rítmicas completas.
Portanto, na Pedra do Ingá, assim como nos muitos mistérios monumentais da humanidade, repousa segredos ininteligíveis. Contudo, no Ingá os segredos remontam uma possível sociedade degenerada e, talvez, só se encontre alguma plausibilidade conjetural se empreendidas pesquisas dedicadas à mitologia comparativa. Uma vez que os ameríndios sul-americanos são os únicos remanescentes deste passado perdido, que podem ter guardado, hermético nas entrelinhas de seus mitos, algumas pistas sobre estes antepassados elaboradores de itacoatiaras. Hierática, ou sacerdotal, não há pista alguma acerca da língua oculta naqueles entalhes. Pois, através da cultura rupestre que representa, temos apenas uma vaga noção de padrões gráficos. Mas se algum dia descobrirmos o que dizem aqueles baixo-relevos petrificados no passado – cujas possibilidades são exíguas – com certeza saberemos muito mais sobre a origem de nossa civilização, nosso passado cultural, nossa pré-história e, talvez, sobre nós mesmos.
Notas:
1 - O primeiro sítio pré-histórico tombado no Brasil foi o sambaqui do Pindaí (1939) em São Luís do Maranhão, por iniciativa do pesquisador Raimundo Lopes.
2 - SPA, Sociedade civil fundada em Campina Grande, registrada no Cartório do Único Ofício Maria das Neves Ramos Vidal Ribeiro em 11 out./2006, presidida pelo autor desse artigo, com objetivo de reunir pesquisadores afins para fomentar as pesquisas arqueológicas na Paraíba.
3 - FUMDHAM, ONG dirigida pela arqueóloga Niéde Guidon que administra os 1.291 km2 do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, em co-gestão com o Ibama e o Ministério da Cultura.
Vanderley de Brito é historiador, pós-graduado em História do Brasil, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), e especialista emérito em pré-história da Paraíba, pela soma de estudos empreendidos na área, em especial na Pedra do Ingá. É também autor dos livros: “A Serra de Bodopitá: pesquisas arqueológicas na Paraíba” (2006); “A Pedra do Ingá: itacoatiaras na Paraíba”, em duas edições (2007/2008); “Arqueologia na Borborema” (2008); e co-organizador do livro “Pré-história: estudos para a arqueologia da Paraíba” (2007). Contato:
[email protected]
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